A
PAIXÃO PELO FUTEBOL E A PERERECA VOADORA
Por
Nelson Alves Barboza, baseado numa história verídica. Os nomes dos
personagens são fictícios.
Zé
do Tanque era um sujeito simplório cujo único exercício físico
era a pelada dominical no “Rala Coco”, um campinho de barro
batido num pequeno sítio de Jacarepaguá, situado próximo à
Colônia de Curupaiti, no Rio de Janeiro.
Entregue
aos seus afazeres diários durante a semana na repartição em que
trabalhava, só tinha tempo disponível para o lazer aos domingos,
jamais deixando de comparecer à pelada, onde encontrava com outros
amigos peladeiros, tomava sua cervejinha e se divertia bastante.
A
pelada era concorridíssima, reunindo “atletas” dos mais
diferentes ramos de atividade, misturando jovens e “coroas”, com
idades variando entre 17 e 55 anos. Era uma confraternização geral:
bancários, barnabés, militares da reserva, contínuos, economistas,
estudantes,
aspones, vendedores etc. Na animada reunião, misturavam-se
barrigudos, magros e até um deficiente físico de uma perna, muito
habilidoso com a bola, notadamente ao bater escanteios, que eram
precisos.
E
o Zé do Tanque era o mais animado de todos, embora lhe sobrasse
apenas o gol para jogar, pois não era lá muito bom em outras
posições do campo. Mas ali ele se aperfeiçoou e passou a mostrar
todo o seu valor. No gol passou a ser quase imbatível. Pegava até
pensamento.
Entusiasmadíssimo
com a “importante” posição que ocupava, juntou uns trocadinhos
e comprou vistoso uniforme de goleiro, com direito a joelheiras,
luvas e camisa acolchoada com proteção para o peito e cotovelos,
pois não era fácil fazer suas arrojadas defesas naquele campo
irregular e cheio de areia e pedrinhas.
Como
havia muitos “candidatos” para participar das pelejas, foi
instituído um processo de escolha que privilegiara o equilíbrio de
forças das equipes. Após um par-ou-ímpar, os dois participantes
mais experientes (geralmente os mais idosos) escolhiam,
alternadamente, aqueles que jogariam a primeira partida (8 de cada
lado, mais o goleiro). Os que sobravam da “seleção” formavam
times secundários. O time vencedor sempre permanecia em campo para o
jogo seguinte. As partidas poderiam ser “de 6”, “de 8” ou “de
12”, dependendo do número de interessados em jogar. Na “de 6”
venceria o time que primeiro fizesse o sexto gol, e assim
sucessivamente.
O
primeiro a ser escolhido no par-ou-ímpar, por sua garra e
performance, era o Zé do Tanque.
Zé
era de uma dedicação total. Sacrificava-se, ralava-se, trombava e
jogava-se aos pés dos atacantes em manobras arriscadíssimas. Tudo
pela vitória. Raro era o dia em que não se machucava, no denodado
esforço que fazia para evitar o gol dos adversários, naquele áspero
campinho, situado às margens do “Podrão”, um fétido riacho de
águas poluídas onde a bola caía constantemente.
Ao
voltar do Podrão, a bola vinha molhada, fedendo, cheia de coliformes
fecais e outras bactérias nocivas. O pessoal nem ligava para isso. A
vontade de vencer superava tudo. Chutavam, “matavam no peito”,
cabeceavam, entupindo seus corpos com aquele líquido viscoso e
malcheiroso.
Ao
final da pelada, sujos e fedorentos, iam para o refrescante banho
gelado, antecessor das “louras geladas” que viriam depois. O
“chuveiro” era uma torneira na altura de uns dois metros,
presente de um candidato a vereador que almejava conseguir uns
votinhos com a “rapaziada”.
Um
dia, aconteceu o inusitado: numa partida ferrenha, disputada palmo a
palmo, “Nico Dinamite”, famoso por seu chute potentíssimo,
desfere tremendo “tijolaço” da intermediária do pequeno campo,
pegando de surpresa o goleirão Zé. A bola resvala no chamado
“montinho artilheiro” e bate em cheio no seu rosto, arrancando
sua dentadura, carinhosamente apelidada por ele de “Perereca”. A
pancada foi tão potente que o Zé ficou zonzo e ninguém viu para
que lado a “Perereca” voou.
Como
ela não estava nas proximidades do gol, deduziram que só poderia
ter caído no Podrão, que passava a dois metros de distância da
linha de fundo.
Imediatamente
o jogo foi interrompido, e todos foram procurar a “bendita”,
entre as touceiras de capim e detritos acumulados nas margens do
poluidíssimo riacho. Não foi tarefa fácil. Dentro do valão, havia
uma infinidade de lixo de todo tipo, além, é claro, das
sanguessugas, ávidas por pegar as pernas dos “invasores”. E a
“perereca” do Zé fez jus ao nome, escondendo-se muito bem.
Após
uns dez minutos, com o Zé ainda atordoado, finalmente foi encontrada
a “perseguida”, perto de um cocô que passava boiando. Entregue
ao intrépido guarda-vala (literalmente), este, contentíssimo, não
se fez de rogado: foi até o “chuveiro”, jogou um pouco de água
na “bichinha” e colocou-a de novo na boca, voltando para debaixo
da baliza e exclamando:
– Como
é que é? Vão ficar aí parados? Vamos continuar o jogo, pô!
Desse
dia em diante, a turma passou a chamar o Zé do Tanque de “Zé da
Perereca Voadora”.
Zé
foi o único do grupo a contrair hepatite.
Após
uns dois domingos de quarentena, voltou com força total a defender
valentemente o seu time, mas agora, por precaução, usando um pó
fixador de dentadura.
A
Perereca, então devidamente fixada, nunca mais pererecou. Isto é
que é paixão pelo futebol...
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