terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

A PERERECA VOADORA

A PAIXÃO PELO FUTEBOL E A PERERECA VOADORA

Por Nelson Alves Barboza, baseado numa história verídica. Os nomes dos personagens são fictícios.
Zé do Tanque era um sujeito simplório cujo único exercício físico era a pelada dominical no “Rala Coco”, um campinho de barro batido num pequeno sítio de Jacarepaguá, situado próximo à Colônia de Curupaiti, no Rio de Janeiro.
Entregue aos seus afazeres diários durante a semana na repartição em que trabalhava, só tinha tempo disponível para o lazer aos domingos, jamais deixando de comparecer à pelada, onde encontrava com outros amigos peladeiros, tomava sua cervejinha e se divertia bastante.
A pelada era concorridíssima, reunindo “atletas” dos mais diferentes ramos de atividade, misturando jovens e “coroas”, com idades variando entre 17 e 55 anos. Era uma confraternização geral: bancários, barnabés, militares da reserva, contínuos, economistas, estudantes, aspones, vendedores etc. Na animada reunião, misturavam-se barrigudos, magros e até um deficiente físico de uma perna, muito habilidoso com a bola, notadamente ao bater escanteios, que eram precisos.
E o Zé do Tanque era o mais animado de todos, embora lhe sobrasse apenas o gol para jogar, pois não era lá muito bom em outras posições do campo. Mas ali ele se aperfeiçoou e passou a mostrar todo o seu valor. No gol passou a ser quase imbatível. Pegava até pensamento.
Entusiasmadíssimo com a “importante” posição que ocupava, juntou uns trocadinhos e comprou vistoso uniforme de goleiro, com direito a joelheiras, luvas e camisa acolchoada com proteção para o peito e cotovelos, pois não era fácil fazer suas arrojadas defesas naquele campo irregular e cheio de areia e pedrinhas.
Como havia muitos “candidatos” para participar das pelejas, foi instituído um processo de escolha que privilegiara o equilíbrio de forças das equipes. Após um par-ou-ímpar, os dois participantes mais experientes (geralmente os mais idosos) escolhiam, alternadamente, aqueles que jogariam a primeira partida (8 de cada lado, mais o goleiro). Os que sobravam da “seleção” formavam times secundários. O time vencedor sempre permanecia em campo para o jogo seguinte. As partidas poderiam ser “de 6”, “de 8” ou “de 12”, dependendo do número de interessados em jogar. Na “de 6” venceria o time que primeiro fizesse o sexto gol, e assim sucessivamente.
O primeiro a ser escolhido no par-ou-ímpar, por sua garra e performance, era o Zé do Tanque.
Zé era de uma dedicação total. Sacrificava-se, ralava-se, trombava e jogava-se aos pés dos atacantes em manobras arriscadíssimas. Tudo pela vitória. Raro era o dia em que não se machucava, no denodado esforço que fazia para evitar o gol dos adversários, naquele áspero campinho, situado às margens do “Podrão”, um fétido riacho de águas poluídas onde a bola caía constantemente.
Ao voltar do Podrão, a bola vinha molhada, fedendo, cheia de coliformes fecais e outras bactérias nocivas. O pessoal nem ligava para isso. A vontade de vencer superava tudo. Chutavam, “matavam no peito”, cabeceavam, entupindo seus corpos com aquele líquido viscoso e malcheiroso.
Ao final da pelada, sujos e fedorentos, iam para o refrescante banho gelado, antecessor das “louras geladas” que viriam depois. O “chuveiro” era uma torneira na altura de uns dois metros, presente de um candidato a vereador que almejava conseguir uns votinhos com a “rapaziada”.
Um dia, aconteceu o inusitado: numa partida ferrenha, disputada palmo a palmo, “Nico Dinamite”, famoso por seu chute potentíssimo, desfere tremendo “tijolaço” da intermediária do pequeno campo, pegando de surpresa o goleirão Zé. A bola resvala no chamado “montinho artilheiro” e bate em cheio no seu rosto, arrancando sua dentadura, carinhosamente apelidada por ele de “Perereca”. A pancada foi tão potente que o Zé ficou zonzo e ninguém viu para que lado a “Perereca” voou.
Como ela não estava nas proximidades do gol, deduziram que só poderia ter caído no Podrão, que passava a dois metros de distância da linha de fundo.
Imediatamente o jogo foi interrompido, e todos foram procurar a “bendita”, entre as touceiras de capim e detritos acumulados nas margens do poluidíssimo riacho. Não foi tarefa fácil. Dentro do valão, havia uma infinidade de lixo de todo tipo, além, é claro, das sanguessugas, ávidas por pegar as pernas dos “invasores”. E a “perereca” do Zé fez jus ao nome, escondendo-se muito bem.
Após uns dez minutos, com o Zé ainda atordoado, finalmente foi encontrada a “perseguida”, perto de um cocô que passava boiando. Entregue ao intrépido guarda-vala (literalmente), este, contentíssimo, não se fez de rogado: foi até o “chuveiro”, jogou um pouco de água na “bichinha” e colocou-a de novo na boca, voltando para debaixo da baliza e exclamando:
Como é que é? Vão ficar aí parados? Vamos continuar o jogo, pô!
Desse dia em diante, a turma passou a chamar o Zé do Tanque de “Zé da Perereca Voadora”.
Zé foi o único do grupo a contrair hepatite.
Após uns dois domingos de quarentena, voltou com força total a defender valentemente o seu time, mas agora, por precaução, usando um pó fixador de dentadura.
A Perereca, então devidamente fixada, nunca mais pererecou. Isto é que é paixão pelo futebol...

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